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27 janeiro 2013

Márcia e os potes de sorvete

Estava para jogar fora um pote vazio de sorvete e me lembrei de Márcia. Mulher de pequena estatura, pele morena, olhos puxados - aquela mistura bem brasileira de índio, negro e europeu. Dentro de um supermercado, ela passaria por uma cliente qualquer, bisbilhotando as prateleiras de produtos de limpeza. Quando passei por ela, mesmo com pressa, acabei parando para ouvir melhor o que ela falava, porque me pareceu que falava comigo. Na verdade não falava comigo, mas estava tão admirada com um recipiente de plástico branco, transparente, que falava em voz alta. “Que jarra de água linda!”, ouvi ao passar por ela, “mas é muito cara!”, exclamou em seguida. Foi aí que transformei aquele monólogo em um diálogo, comentando que não se tratava de uma jarra de água. A um metro de distância da peça eu li no rótulo que aquilo era um porta-sabão em pó e revelei isso a ela, acrescentando que não entendia para que comprar uma coisa daquelas, se sabão a gente colocava em qualquer pote de sorvete. Pronto! Foi como se tivesse puxado a cordinha de uma boneca tagarela.
Ela começou a contar, sem parar, a história da sua vida assim que chegara a Brasília. Veio do interior do Maranhão, sozinha, há uns 10 ou 15 anos, para trabalhar como empregada doméstica. Não conhecia nada da sociedade de consumo e qualquer pote de sorvete para ela era valioso, tanto que a patroa, na primeira semana de trabalho, juntou vários desses recipientes em uma bacia grande e deixou na área de serviço para que ela jogasse fora. “Ai, meu Deus, que vergonha que eu passei; lavei todos os potinhos com o maior cuidado e guardei tudo nos armários da cozinha”, lembrou-se Márcia. Vergonha porque, conforme explicou, ela não havia entendido que aqueles potes e a bacia eram lixo. “Comecei a ver as pessoas desperdiçando coisas, jogando tudo fora, mas eu não podia guardar porque morava na casa da dona Vilma, até o dia em que eu arrumei um quartinho para morar e comecei a ganhar aquilo tudo”, relatou ainda.
Pelo relato que fez, nós duas em pé no meio do corredor do supermercado, Márcia montou uma casa dos sonhos. Não tinha nada a não ser um monte de potes de sorvete, bacias velhas, panelas que ninguém mais queria; mesas e cadeiras que os vizinhos iam jogando fora. Especializou-se em recuperar esses objetos. “Meu quartinho era um cantinho especial, com todo muito limpo e bem arrumado”, conta ainda. Neste momento, arregalou os olhos e revelou um momento de sorte em sua vida: um dia, ao atravessar a rua onde morava, viu um vizinho carregando um fogão para o lixão da vizinhança. Correu até ele e perguntou para onde ele estava levando o fogão, já imaginando a resposta. Resultado: ganhou o fogão e o frete até o seu quartinho.

“Eu não posso reclamar da minha vida, porque acho que sempre tive muita sorte, apesar de ser pobre”, disse Márcia. Eu começava a me incomodar com o tempo da conversa, pois percebi que ela usava um uniforme de uma firma de contratação de mão de obra de limpeza. Ela era funcionária do supermercado e estava ali, no meio da manhã, falando da sua vida. Mas ela não estava preocupada. “É, já vou, mas deixa eu contar o melhor momento da minha vida, depois eu vou trabalhar”, disse. Contou então que depois de alguns anos conseguiu um emprego melhor e mudou-se para um “barraco”, com quarto, sala, cozinha e banheiro. Então trouxe o filho para morar com ela, que até então vivia com a avó, no Maranhão. Levou todos os seus objetos preciosos, do fogão aos potes de sorvete, e resolveu então juntar dinheiro para comprar uma geladeira, que seria a primeira de sua vida.
“Você não sabe a emoção que eu senti quando entrei em uma loja e paguei minha geladeira à vista”, declarou com os olhos cheios d’água. “Juntei o dinheiro mês a mês e ia olhando aqueles folhetos que as lojas distribuem com promoções, até que um dia eu vi que tinha o dinheiro para comprar uma geladeira que estava anunciada”, narrou. Ela disse que ainda se lembra de toda a cena, ela entrando na loja, o dinheiro na bolsa, o vendedor perguntando o que ela queria, ela escolhendo -“eu quero essa” - e o vendedor querendo saber em quantas parcelas ela iria fazer o pagamento, e ela dizendo que pagaria à vista. “Eu ria tanto que a moça do caixa começou a rir também, sem nem saber o motivo, mas eu estava tão feliz que contei para ela, que tinha vivido com dificuldades, morei num quartinho, longe do meu filho, e que meu sonho era comprar uma geladeira e pagar à vista”, contou. 
Riu mais alguns dias, e riu ainda de felicidade contando essa história, e riu também quando a geladeira chegou e ela foi colocando os potes de sorvete dentro dela, cheios de alimentos que até então não podia guardar por muito tempo. “Minha casa agora estava completa”, disse Márcia, “e tudo muito limpinho, arrumadinho, como uma casa de princesa”. Um dia ela comprou também um fogão novo e deu aquele que ganhara para uma amiga recém-chegada a Brasília, na mesma situação que ela enfrentou quando veio do Maranhão. “E falei pra ela cuidar bem do fogão, ensinei a usar os potes que as patroas querem jogar fora e disse que é só a gente ser cuidadosa e bem limpa que a casa fica linda”, ditou Márcia. 
Antes de se despedir, ela ainda lembrou-se do dia que comprou o seu primeiro pote de sorvete, tomou o sorvete com o filho, até que acabou. Esse pote é outro objeto especial na casa de Márcia, assim como a geladeira, e como foram o fogão e os demais potes que ganhou. 
“Agora, imagina usar uma jarra de água linda dessas aqui para guardar sabão? Usa um pote de sorvete e pronto”, finalizou a caminho do local de trabalho. (13.03.2010)