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21 março 2015

A "Mulher da Pasta"

7:30 da manhã. O trânsito começa a ficar pesado. Mas lá vem ela pelo mesmo trajeto, sorrindo pra vida, caminhando fora da calçada, no sentido contrário ao dos carros. Quando acha possível, arrisca-se a atravessar a rua. Não espera o sinal ficar verde. Atravessa. Sem pressa. Fica no meio da pista esperando pra atravessar o resto da rua. Ainda ali, olha para a padaria bem a sua frente. E é pra lá que se dirige assim que consegue driblar mais uma fila de carros. Chega sorrindo e fala algumas palavras que ninguém entende. Um senhor que vende bolinhas de borracha na porta da padaria responde "Ela não está". Ela quem? Talvez ninguém. É só uma resposta qualquer pra uma pergunta qualquer. Isto acontece todos os dias desde que ela passou a andar por aí.
Ela é uma mulher magra, de cabelos brancos e fartos, que sempre se veste com uma saia e uma blusa escuras. A saia é longa, quase arrastando no chão. Às vezes nem dá para notar que ela está descalça. Carrega invariavelmente algumas sacolas de supermercado cheias de coisas que só ela sabe o que são. Dizem que se chama Maria. Eu e minhas filhas a identificamos como a "Mulher da Pasta", pois há tempos atrás, no lugar das sacolas, ela carregava uma pasta estilo executiva. Ela andou sumida e quando voltou estava usando as sacolas e a pasta deixou de acompanhá-la. Fora esta alteração, continuava com a mesma aparência e fazia o mesmo trajeto de sempre. Uma vez a vi sentada no meio deste caminho, sob uma árvore, cercada de livros e folheado um deles. Enquanto folhava, olhava para longe, como se lesse a história em outra dimensão. Carregava os livros sobre um dos ombros e segurando com a cabeça. Os livros também sumiram como a pasta, mas as sacolas de supermercado são sempre carregadas. O que será que elas contêm? Quem é essa mulher e o que faz?
Bem, a "Mulher da Pasta" continua sendo uma incógnita. Tenho vontade de conversar com ela, saber quem é, de onde vem, para onde vai. Mas meu impulso de repórter é contido pela lembrança de uma infância vivida em cidade do interior. Esses lugares sempre conservam entre seus habitantes uma figura como a "Mulher da Pasta", que alimenta a imaginação e o medo das crianças justamente por ser uma incógnita. Lembro-me do "Deus Verde", uma criatura enigmática, que usava túnicas longas e tinha uma barba comprida e verde. Eu hoje não tenho certeza se via a barba dele verde mesmo ou era a minha imaginação de criança que ia compondo o personagem a partir das narrativas de crianças e adultos, mas tenho certeza do medo que sentia. Com essas imagens revividas pela figura de agora, evito me aproximar e fico sem saber quem é a mulher da pasta, assim como deixei de saber quem eram outras figuras como esta soltas pelas ruas.
Enquanto tenho reminiscência, ela sai da padaria e continua andando o dia inteiro. Já a vi por duas ou mais vezes retornando para a mesma rua por onde passa de manhã cedo, ainda sorridente, na mesma cadência. Para onde será que ela vai? - continuo pensando.
(28-06-2013)

Os Scliar

Um dia conheci um Scliar no subsolo de uma galeria de artes, em um dia e um mês de algum ano da década de 1980. Era o Carlos, um senhor baixinho, com mais de 60 anos de idade, semblante simpático, que me contou histórias que eu não conhecia. Falou do clube de gravura do Rio Grande do Sul, aquela experiência vanguardista das artes plásticas brasileiras, quando um grupo de artistas procurou dar à arte uma utilidade social, a exemplo do que já vinha sendo feito na Europa no pós-guerra. Carlos Scliar me contou que, em 1950, juntamente com outros artistas gaúchos (Glênio Bianchetti, Danúbio Gonçalves e Vasco Prado) criou o Clube da Gravura de Porto Alegre (1950) de Bagé (1951). Tinham o intuito de praticar as técnicas de gravura e, ao utilizarem esta linguagem, aproveitar para difundir a arte entre a população de todas as camadas sociais. Já vivendo entre São Paulo, Rio e Porto Alegre, Carlos Scliar me contou muito mais, sobre antigas e novas gerações das artes plásticas. O Clube da Gravura tinha ficado para trás, mas ainda repercutia em sua obra. Além de óleo/tela, quando o conheci ele ainda fazia serigrafias, queria continuar propagando sua obra também para os que não podiam pagar caro por ela. Foi assim que adquiri uma gravura dele.
Outro dia, anos depois de conhecer o Carlos, conheci o Moacyr, um sobrinho dele ligado a outra arte, a de escrever. Passava pela redação da TV Senado, onde trabalho, e no final do corredor avistei uma pessoa cuja figura pública reconheci. Me aproximei e cumprimentei, como se faz com toda personalidade. Nós, simples mortais, sempre achamos que as personalidades acham que conhecem todo mundo e, por isso, não vão achar estranho um cumprimento a mais, um aperto de mão, ou “que prazer”, “há quanto tempo que não te vejo”. Mas o jornalista que estava com ele, que tinha acabado de entrevista-lo, me apresentou. É como um contato do admirador do vinho com o vinho. Sorve-se o vinho com prazer imensurável, deliciando-se com cada gota, cada molécula da bebida. O vinho, no entanto, permanece vinho, impassível, ainda irresistível, mas vinho.
Bem, ali estava mais um Scliar que eu admirava e sorvi este prazer solitário de uma forma que só eu entendia. Com uma pitada de orgulho bairrista, coisa que só gaúcho entende, saí dali saltitando, como uma tiete adolescente. Eu agora conhecia o autor de O Centauro no Jardim e A Mulher que Escreveu a Bíblia, que era tio de uma das personalidades das artes plásticas brasileiras, que eu também admirava.
Anos depois, os Scliar também iriam me ajudar a compreender a passagem chamada morte. Após conviver com situações familiares nesta área, gente que não deixou livros nem pinturas para a posteridade, percebi que cada um deixa o que pode, ou, nós que ficamos sorvemos o que nos interessa daqueles que se foram. Da minha mãe guardei a dedicação e o desprendimento; do meu sogro, a organização; dos Scliar, livros e pinturas que não são só meus, mas da coletividade.
(03-03-2011)

11 março 2015

Parto

Um dia eu parto -
passo a passo,
de mansinho
Me parto ao meio,
me parto em pedaços
Parto aos poucos,
viro fumaça e me esparramo pela rua;
viro pozinho de p i r l i m p i m p i m
Feito purpurina,
assim brilhante vou
longe
voo longe
Me esparramo pelo mundo,
me misturo pelos ares e bares,
reencontro outras partículas e me recomponho
Na sala de parto, eis-me de novo
parida ao mundo