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30 novembro 2015

Ex-pessoa sem alminha!

Os olhos brilhavam como se fossem desenhos de mangá. Uma bolinha de luz nos dois olhos.
O sorriso era outra lembrança de um desenho. Dentes brancos e perfeitos. Como se fossem uma só peça. Propaganda de creme dental. Estava sorrindo naquela esquina quente e movimentada e nem viu o carro que, desgovernado, subiu na calçada e atingiu várias pessoas como num jogo de boliche. Carro pesado como bola de boliche. Ele era uma daquelas pessoas. Jazem agora. Já eram pessoas. O carro todo arrebentado contra a parede da loja e as ex-pessoas ali pelo chão.
Cena seguinte: o espanto nos rostos sobreviventes. E as mesmas bolinhas de luz nos olhos dos rostos sobreviventes. Pensei que seria melhor se todos saíssem dali porque poderia acontecer de novo. Já pensou de novo a mesma tragédia levando dali um monte de alminhas felizes? Nem tão felizes agora, com certeza, porque acabaram de presenciar aquilo tudo. Mas alminhas vivas ainda. Mas foi só pensamento besta de quem acabara de presenciar uma tragédia.
Cena seguinte: as sirenes insuportáveis. As sirenes sempre sirenes arrancando todos do torpor do susto do drama. E os paramédicos correndo como se fosse possível salvar os que já perderam as alminhas.
Cena seguinte: a polícia chegando e indo atrás do causador da tragédia. Mas os policiais não viram que do carro assassino também saiu uma alminha esvoaçante e em pânico, já imaginando as provações pelas quais passaria.
Mais cena seguinte: as famílias. Ainda não chegaram, mas como vão sofrer essas famílias. Será que vão querer um enterro coletivo? Será que criarão amizade? Será que existem famílias daquelas ex-pessoas? Será que têm crenças diferentes e vão ficar discutindo o motivo da tragédia? Foi Deus foi o diabo? Será que vão perseguir a família do motorista assassino (ou suicida?). Ah, famílias, famílias.
Cena seguinte: distraída com tantas ideias quase fui atropelada enquanto atravessava a rua. Estava na faixa de pedestre, mas tive a sensação de estar transparente porque os carros foram passando mesmo eu dando sinal com a mão que estava atravessando. Aí veio aquele estalo na minha consciência: estou morta que nem aquelas ex-pessoas na calçada que acabei de deixar. Apalpei meus braços meu rosto pescoço tórax. Estava tudo ali, inteiro, sem sangue nem dores. Mas lá no fundo, bem no fundo mesmo, não encontrei minha alminha. Fiquei apavorada por não ter percebido que minha alminha já não era mais minha. Como é que pode ela ter me deixado e eu não ter percebido nem pra dar um tchauzinho, ou adeus porque a gente não se vê nunca mais. Oh minha alminha querida que tantas vezes me ajudou e compartilhou meus momentos. Afinal, foram mais de 50 anos. Deveria ter me despedido. Procurei em volta. Olhei pro céu pra ver se havia uma alminha subindo. Mas pensando bem nunca ninguém determinou que as alminhas têm que ir pro céu. Elas podem ficar na terra mesmo. Andando a nossa volta. Nossa não,  em volta das pessoas. Como eu sou uma ex-pessoa não terei mais alminhas andando em volta de mim. Lembrei-me que, na verdade, as ex-pessoas se vão. Somem. Viram pó. Só precisam ficar quietas por um tempo que vão se transformar inevitavelmente.
Última cena: Sentei no meio da rua, na faixa de pedestre. Deitei e rolei naquelas faixas brancas com os carros passando por cima de mim. Sempre tive vontade de saber como era a vida daquele ponto de vista. Eu lá, já sem vida, tendo sensações de prazer e espanto, ainda. Aí me dei conta que precisava ficar quieta pra virar pó. Parei de rolar de um lado para o outro. Só fiquei sentada. O semáforo ficou verde e vermelho inúmeras vezes. O dia virou noite. O trânsito diminuiu até virar um ou dois carros de cada vez. Cansei de ficar quieta e ainda nada aconteceu. De longe avistei outras daquelas ex-pessoas encostadas nas paredes perto do local do acidente. Foi tanto tédio que dormi. Ou será que virei pó?